Era
um dia comum e nada tinha para fazer. Enfiei uma roupa qualquer, cerrei a porta
com força e, quase sincronizado com esse bater, iniciei a procura das chaves no
meu bolso vazio. Depois a busca no outro bolso. Vazio. Ausente.
Sou
sempre um bocado assim, já nem me canso com esta mundana repetição de
esquecimentos. O que eu precisava mesmo era de passear que a cabeça me ardia
mortalmente.
Agarro
na bicicleta-velha e pedalo. Esquerda. Direita. Esquerda. Direita.
Agora com mais vigor.
Agora por mais tempo sem descansar.
E o tempo e o vento esvaziou-me o
pensamento. As minhas passadas rolantes levaram-me à praia. Àquela praia.
Estava bonito e airoso o tempo. O
mar não tinha pressa no seu enrolar. O sol ainda se enublava no seu olhar.
Peguei no meu livro de bolso, amachuquei-me na areia húmida e tentei
concentrar-me. Há já uns dias que este Ensaio de Dom Juan não se acabava
e havia que acabar, não era? Temos sempre coisas para fazer que não nos faz
sentido fazer, mas que não deixam de obrigar.
Passei por duas páginas, ou era a
mesma que se folheava nos meus olhos? Quem disse a algum autor em algum lugar
que os livros se lêem melhor em letras pequenas e em palavras confusas? Bem,
confusas como estas mesmas palavras confusas.
Do nada, dei um valente berro (e eu
que nem sou daqueles de gritar!). Quem é que me mordeu o traseiro como se de
comida se tratasse?
Comecei a varrer o ar à minha frente
com aquele meu olhar acusador. Serão aquelas duas miniaturas de pessoas, que
brincam com miniaturas de si próprias, os portadores de tais afiadas dentuças? Tento
intimidá-las com o meu olhar irado... Nada. As crianças continuam a brincar em
perfeito silêncio. Senti ainda mais a urgência de encontrar o/a causador(a) do
mau estar da nádega, [até porque precisava de perceber possíveis fontes de
infeções carnais].
No canto do meu campo de visão surge
um movimento... é o meu chapéu de feltro que caminha de forma sorrateira? E,
porque brincam crianças em pleno silêncio? Meio a medo, cheio de curiosidade,
ergo o dito objecto e vejo um crocodilo bebé. Sim! Um crocodilo bebé de cor
verde-bela, olhos enormes e com um olhar de pedir desculpa que comoveria até o
mais magoado rabo. Um sorriso força-se na minha expressão (só me apercebo
porque tenho os músculos destreinados deste movimento), eu nunca tinha posto os
olhos num crocodilo. Aproximo a mão e acaricio o sedoso que são as suas
escamas, a minha mão escorrega como em pelo. Ele então começa a farejar a minha
perna e o calor atinge-me em pequenas lufadas de prazer. Fico arrepiado quando
ele, com imensa agilidade, começa a trepar por mim acima, fazendo-me cócegas
nas costas. Estou, assim, de olhos meio cerrados quando o bichinho se aproxima
do meu rosto. E, ai, que choque! Uma onda de cheiro não-nada agradável
entranha-se bem no meu nariz. Arregalo de imediato os olhos. Porque me morde
uma ratazana-verde o queixo? Onde está o crocodilo?
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