quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Dona Maria do Bairro

A Dona Maria do nosso bairro há muito que se conformou com a sua entrada na terceira idade. Quem a convenceu foi certamente a perda de agilidade do corpo (cai muito frequentemente), a falta de visão (à qual recusa os óculos), os dentes que se tornam gastos (incluindo aqueles que já são artificiais), mas essencialmente o inchaço das articulações e o engrossar da sua pele adiposa.

A vestimenta também parece, por vezes, desleixada, os tecidos pouco nobres e a esgaçar, um misto entre roupa de senhora e fato de treino. Isso não a preocupa, prende-a uma causa maior, de que só nos apercebermos se a virmos no ir em vez de no voltar.

No ir arrasta o seu carrinho de compras com padrão axadrezado, companheiro fiel de compras de quem se desloca a pé. Deste carrinho, sai espetado um comprido tronco de uma árvore jovem. Uma nespereira?

"Então, Dona Maria, vai lá ao talhão plantar a árvore?"

"Sim, tem de ser! A ver se me deixam entrar com a árvore no autocarro. Mas se aos turistas deixam entrar com aquelas malas enormes!"

E assim a deixaram entrar, a ela e à sua missão. A de plantar uma árvore a dois autocarros de distância de sua casa. Dois autocarros! Nos quais entra de forma atabalhoada e quase quebrando o topo da árvore (se não fora avisada pelos restantes!) para a ir plantar num talhão. No tal talhão. A que a curiosidade nos prende, mas nenhuma resposta obtemos.

Quando saí, as companheiras do autocarro dizem que a vêm frequentemente a falar sozinha. Ela não fala sozinha, ela preenche o silêncio de sua casa com as palavras e, esquece-se que na rua já não precisa de o fazer. Na rua há tanto ruído e tantas gentes com quem entabular conversa... Falar sozinha são as defesas que a mente vai criando para se soltar da solidão.

Se encontrarmos a Dona Maria no voltar, já sabemos que estará suja, mas sorridente e poderá vir a falar sozinha. Ainda arrasta um carrinho de mão de compras, mas fácil de transportar, leve com a leveza da alma com missão cumprida.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Os novos caminhos

Há um curioso destino em nos deslocarmos de outra forma. Hoje atravesso a minha cidade de comboio. Sento-me no piso superior onde vejo o céu a puxar chuva.
É que hoje cheira mesmo a chuva. E esse cheio é belo. E este caminho também. E há tantas pessoas neste meio. Neste meio caminho.
No caminho de todos os dias já me acostumei ao livro duma rapariga que é sempre o mesmo (por mais livros que eu troque entretanto). Já me acostumei ao caos semi-organizado daqueles que caminham sempre com pressa. Sempre.
Neste novo caminho vejo um senhor de meia-idade, ou um pouco mais novo, que usa sapatos de vela coçados sem meias e esforça-se por conseguir ler. Primeiro um caderno de pautas musicais. Vejo-lhe os lábios a movimentarem-se e a não produzirem o som da sua cabeça.
Tem um cabelo que ondula e uma barba perfeita. Atravessa-lhe o peito algo laranja. Uma gravata laranja? Seria demasiado gritante. Não, trata-se de uma mala, onde tudo o que ele começa lá acaba. Guarda então a pauta desanimado. Pega no kindle. Tenta mover os lábios. Perde-se o olhar no exterior. De novo. Desiste de ler e retorna o kindle à mala-Doramon. Onde vais tu, músico de comboio?
Onde estão as tuas meias neste dia frio?