sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Anel

foi um anel que se cravou no sapato. um brinde ao acaso. o diamante perfurou até à carne, tal o tamanho, mas o resto era latão. estranheza ao acaso. pegou-lhe, gostou do espanto que lhe tomou todo o rosto. seria reconhecimento? sim, o cheira familiarizava-se nela. era o anel da avó de cabelos dourados. lembra-se das suas carícias arrepiadas pelo anel, mesmo tendo a avó morrido antes dela nascer. ainda assim a recordação era lúcida. pegou no anel com carinho e deu-o ao sem-abrigo mais próximo. o passado só se vive pisado com os pés.

A tua escrita hedionda.

Abomino tudo o que escreves, mas vejo-me forçada a ler. 
Desculpa, mas dedicares-me livros não dá com nada. Depois como é os faço voar pela janela?
Sei que tentas ao máximo escrever sobre o amor, mas o que sabes tu sobre o amor? Sobre amar? Sobre perder?
Tiveste uma vida santa, sem grandes conflitos, sem grandes entraves. Até se podia dizer que eras empático, mas na maioria dos dias nem ouves o que te dizem.. A senhora do quiosque estava a pedir que tu te preocupasses, que lhe perguntasses pelo marido e tu não quiseste saber! Nem sei como é que alguma vez te dei o meu número de telefone, mas agora é meio tarde, agora dependo de ti profissionalmente. 

Sinceramente, 
a tua secretária amargurada.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Pé no charco

A menina colocou a ponta do dedo grande no charco, testando-o. Círculos aquíferos soltaram-se de si.
Depois colocou o pé todo e espantou-se porque conseguia caminhar sobre as águas.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A travessia

No cais onde ela se sentava nos dias quentes passavam grandes navios. Apetrechados para viagens por mares sem fundo, onde os marinheiros são cativados por sereias e a proa por escarpas de Cabos da Tormenta. São muitos dias a bordo, só com o azul do mar e do céu por companhia. Pior é para os tímidos, que vivem tanto no seu interior e tão pouco no seu exterior. Pior para os que enjoam, os que se cansam, os doentes, especialmente aqueles que precisam de tratamento, e acabam a repousar no fundo do mar.
Ela olhava esses grandes navios e os navios mais pequenos. Para onde iam esses? A travessia do canal, a travessia do mar pequeno, um viagem de recreio? Não eram tão exóticos, tão curiosos, tão desesperados como os grandes. Ela queria era entrar num grande! Fazer uma travessia desafiante, única. Mudar o ritmo e o som da sua vida, encontrar-se a si mesma no outro sítio onde fosse. Aquele desconhecido. Seria ela igual? Atrever-se-ia a ser ela própria? Quem era ela própria?
O próprio medo não seria de descobrir?

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Ao som dos últimos dias

Decorridos todos esses anos, olhava para trás, com o doce desprendimento do tempo. Nada importava mais. Tinha sido uma vida desperdiçada com a ganância, mas não existiriam tantas? Apiedo-me de que a sabedoria da velhice só lhe ocorra agora, que bem lhe teria servido como guia de acção, como grilo falante, como despertador. Agora entardece os dias à sombra da sua pequena janela, com um resto de sol que se reflecte nas tábuas do chão.
Aguarda o gentil toque da morte. Aguarda para rever aqueles que já partiram, que atravessaram a outra margem. E assoma-o medo de que possa não ir para junto dos seus, mas para outro purgatório, onde as pessoas realmente más são esperadas.