sexta-feira, 27 de outubro de 2017

A alma errante

É uma alma errante, de mochila às costas. Que tem pessoas, uma mão-cheia de grandes amores de vida, que nunca larga realmente.
Caminha cheia e traz-lhes sonhos, aventuras, pedacinhos de amor que encontra pelo mundo. Torna-se mais tolerante, mais amante, mais serena.
Precisa desesperadamente destes momentos de mochilão, de incerteza, de dormir numa cama estranha, de se auto-desafiar. E do momento do regresso, das saudades que tornam tudo mais belo.
De cada vez que vai, tem mais certeza de querer voltar e do lugar onde é feliz, mas ainda assim precisa desesperadamente de estar sempre a partir, por uns bocadinhos, às vezes por bocadinhos maiores. Nunca para sempre, o sempre é aqui.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Ana, caminha.

Ana caminha sempre de olhos postos no chão. Tem horror a cair. Tem também um secreto nojo de pisar secreções alheias. Perde muito mundo ao caminhar assim, mas o medo comanda-lhe esta e muitas acções.
Hoje caiu com convicção. Foi um estardalhaço. Espalhou-se ao comprido, com uma chapada no chão. E ficou-se, exactamente na mesma posição, congelada, um pé preso, as mãos em defesa da cara. Sem um só movimento.
Caiu em início de marcha, as escadas rolantes comeram-lhe o atacador e ela estatelou-se no chão.
Mãos alheias, de várias raças, ergueram-na. Reagiu apenas ao toque. Minutos passariam por si se não tivesse sido tocada. Olhou o rapaz indiano e soltou o seu braço de forma abrupta. Seria racismo? Virou as costas a todos nós, agachou-se para atacar os atacadores, irada, connosco? Consigo? Com este seu medo que não a protegera? Terei visto lágrimas nos seus olhos?
Sem um só agradecimento, mulher estatelada.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Saudades

Saudades de quem não fui. Das chances que joguei ao chão. Daquilo que deixei, mas que nunca conheci. Saudades. As eternas. Daquilo que poderia ter sido. Das possibilidades. Da vida prometida e malfadada.
Poderei recomeçar de novo?

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

com-a-Dor.

Deve ser penoso aperceberes-te que a tua filha vai viver com-a-Dor para o resto da vida. É uma dor física, nem de mais nem de menos, mas que mói, que existe. E, como o corpo foi desenhado para responder silenciosamente às exigências da mente, a-Dor tira-lhe esse sossego e silêncio.
Mas a tua filha aprende a viver com ela, porque é essa a existência que conhece. E tenta não se queixar, porque não existe fruto dessa queixa.
Desculpa não existir nada que possas fazer, mas sabe-a feliz. A-Dor é só uma extensão dela e ela já aprendeu a lidar com ela. 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Cube #01 - Os amores-primeira-vista

Foi amor à primeira vista. Ele era deslumbrante, galante, com dentes que reflectem o sol. Olhava-a real e profundamente, com atenção, com o corpo todo. E ela deixou-se seguir, apaixonada e, em fim, grávida. A típica história pela qual suas amigas fugiam do amor.
Encurralada, encurralou-o.
Primeiro foi um dia de chuva. Constipado, receoso, ele não chegou ao encontro.
Depois chegou a época das neves. E o carro não estava ajustado para as derrapagens.
Seguiram-se os mimos de desculpas, o urso de peluche, as rosas, os bilhetinhos com promessas vãs.
E a ausência. A solidão do erro. As chuvas, os ventos, a neve que lhe revoltavam a alma. A espera. A longitude da espera.
E a apatia. À vida. Às escolhas que não se tomam de corpo quente. E, que a conduz ao dia em que caminha de pés despidos na neve do caminho-entre-árvores, em que vê o objecto que se desloca a alta velocidade, sem vontade de parar e ela sem vontade de sair do seu caminho.
E, a solidão eterna.
Enfim.